O direito à preguiça
Preciso aproveitar o dia bonito e fazer acontecer ou posso só dormir, ler e ficar deitada? Ah, as férias...
Sei que o CLT virou motivo de zoação na internet, mas a verdade é que nada é mais valioso do que *férias remuneradas*. Sou do tipo que jamais vende férias, pois dias sem trabalhar valem mais do que barras de ouro. As férias remuneradas são um direito garantido, pelo menos por enquanto, ao trabalhador CLT; chupa, sociedade!
Pois bem: eis que entrei de férias e, é claro, começaram a surgir as demandas típicas do tempo livre: ir a todos os médicos que deixei pendentes enquanto trabalhava; fazer faxina (sim, por questões financeiras e ideológicas, não tenho diarista nem nada parecido, então preciso tirar férias para fazer faxina); voltar para a dieta; aplicar para mestrados, pós, etc.; atualizar currículo, portfólio; estudar; aproveitar os dias bonitos e ir à praia, correr, ler ao ar livre; ler uns três livros, pelo menos; ver diversos filmes, meu deus a lista não termina, já tô exausta.
Em vez de fazer tudo isso, é claro, comecei a refletir sobre tempo livre. O que as pessoas costumam, de verdade, fazer em seus tempos livres? O que grandes pensadores e artistas fazem no seu tempo livre? Por que, no Instagram, as pessoas estão sempre fazendo coisas interessantes no seu tempo livre em vez de estarem dormindo? Por que dá uma vontade de comprar coisas, mudar o cabelo, ir a cafés superfaturados?
Comecei a pesquisar sobre o assunto e acabei descobrindo que estudar sobre curiosidades existenciais me faz muito feliz e é uma ótima atividade para eu fazer nas minhas férias. É uma ótima forma de relaxar para mim.
O trabalho era uma tortura
Nas minhas pesquisas, descobri que achar o trabalho uma grande virtude é coisa nova. Na Grécia Antiga, no Renascimento e na Idade Média, o trabalho sempre foi considerado uma tortura, coisa de gente pequena, coisa de escravos. Quando Deus expulsou Adão e Eva do Paraíso, ele os condenou a viver do suor do seu rosto. Trabalhar é horrível, gente.

Então veio o capitalismo. Quando a burguesia fez a Revolução Francesa, percebeu que ainda era necessário que uma classe trabalhasse para a outra. Não dava para todo mundo ser livre. Dessa forma, ela se apropriou da religião para introduzir uma nova moral segundo a qual o trabalho é caminho para o céu; o trabalho dignifica e edifica. Além disso, abdicar de prazeres também passou a ser sinal de virtude. O legal era parecer mesmo uma máquina de trabalhar. Alguma coincidência com a sua realidade, amor? Paul Lafargue, esse querido, explica todo esse processo muito bem no texto cujo título roubei para mim.
A partir daí, a preguiça passou a ser punida até mesmo com prisão. As prisões por “vadiagem” são um grande exemplo disso.
E os hobbies?
Nos vemos agora em pleno capitalismo tardio e, de vez em quando, temos um tempinho livre. Voltamos então às minhas dúvidas iniciais: o que fazer com ele? Como driblar a culpa quando não faço nada? No seu texto Tempo livre, Adorno expressa seu choque ao perceber que não tem nenhum hobby; que considera tudo o que faz fora da sua profissão oficial tão sério que é ofensivo chamar de hobby.
“Compor música, escutar música, ler concentradamente, são momentos integrais da minha existência, a palavra ‘hobby’ seria escárnio em relação a elas. Inversamente, meu trabalho, a produção filosófica e sociológica e o ensino na universidade, têm-me sido tão gratos até o momento que não conseguiria considerá-los como opostos ao tempo livre, como a habitualmente cortante divisão requer das pessoas.”
Ele admite que está falando como privilegiado: posso falar categoricamente que o trabalho de professora no Brasil, mesmo na universidade, é tão precarizado e tão insuficiente para as necessidades materiais de alguém que não poderiam trazer essa satisfação que sente Adorno. Sendo assim, quando nosso tempo livre não é utilizado em fazer mais grana, a gente sente culpa.
“Ai de ti se não tens um ‘hobby’”
Mas agora o capitalismo percebeu que precisava lucrar também com o tempo livre das pessoas. Aproveitando que elas já estão se sentindo culpadas no tédio e no ócio, vamos implementar a obrigação do ‘hobby’. Até o Dráuzio Varela, que amo de paixão, lançou um vídeo sobre a necessidade de ter um hobby. O mundinho inteiro do desenvolvimento pessoal na internet tem te dito que é obrigatório ter um hobby:
E os hobbys de todo mundo, de repente, viraram: Bobbie Goods (livro de colorir), corrida com tênis e relógios caros (sair para correr com aquela camisa de político de duas eleições atrás é feio), colecionar funko pop ou frequentar cafés superfaturados. Se você for mais diferentona e preferir escrever, precisa ter um setup comfy no seu escritório e preparar os melhores cafés em xícaras caras para conseguir usar a sua criatividade de verdade.
Para ilustrar como as nossas necessidades foram “funcionalizadas” para o consumo, Adorno, ainda em Tempo livre, cita o exemplo do “camping”, que surgiu do aproveitamento da necessidade dos jovens de sair das casas dos pais e passar a noite fora; dessa forma, foi possível vender barracas e motor-homes.
“Por isso, a integração do tempo livre é alcançada sem maiores dificuldades; as pessoas não percebem o quanto não são livres lá onde mais livres se sentem, porque a regra de tal ausência de liberdade foi abstraída delas.”
Um outro exemplo maravilho que ele traz é o de que, se você não voltar bronzeada das suas férias, as pessoas vão julgar você, como se você não tivesse aproveitado direito. O bronzeado acaba sendo mais importante do que o que você fez com o seu tempo, e sempre haverá ótimas clínicas de bronzeamento disponíveis a parcelar o procedimento e várias suaves parcelas.
Se divertir é obrigatório
Quando comecei a trabalhar em escritório, percebi um fenômeno que é repetido por todas as pessoas que trabalham ali: perguntar para onde você vai viajar nas férias. Na minha época de professora + revisora freelancer, ninguém estava nem aí para o meu tempo livre, porque consideravam que eu não trabalhava e era uma vagabunda. Mas, no mundo corporativo, você precisa viajar nas suas férias.
Gente, viajar dá um trabalhão, exige muito planejamento e, principalmente, dinheiro. Vejo pessoas a adiarem suas férias por não terem conseguido se organizar nem juntar dinheiro para viajar. Como se simplesmente ter tempo livre para relaxar e descansar não fosse o suficiente.
Sempre que tiro férias sem viajar, justifico dizendo que moro na Cidade Maravilhosa e que, afinal, as pessoas vêm para cá tirar férias. Sim: eu preciso justificar por que não irei viajar.
Tédio
Tudo isso é para evitar o tão temido tédio. O CLT morre de medo de se perceber com tempo livre e não saber o que fazer com ele: compor música, ler um livro, tudo isso exige a matéria-prima preciosa das férias: o tempo. Imagina gastar cinco horas em um livro? Um dia inteiro compondo uma música? Como não dá para nos dedicarmos a projetos reais que desejamos realizar, acabamos scrollando timelines no celular: mais uma forma de gerar lucro com o seu tempo.
Sobre o tédio, Adorno vem nos dar um tapa na cara. Ele compara o tédio à apatia política: a gente pode fazer tão pouco politicamente, que não acreditamos na possibilidade fazer qualquer diferença se nos engajarmos politicamente. Assim é com o tédio; a gente pode fazer tão pouca coisa com o nosso tempo livre, que nos entediamos.
“Se as pessoas pudessem decidir sobre si mesmas e sobre suas vidas, se não estivessem encerradas no sempre-igual, então não se entediariam.”
Sempre que tento fazer alguma atividade que realmente me dá prazer, sinto vontade de me engajar, fazer planos, criar um projeto mesmo. Começo a querer fazer mais daquilo. Mas aí vem o choque de realidade: não é possível encaixar esse projeto na minha vida quando as férias acabarem; não vai ser possível finalizar, continuar. Acaba não valendo a pena sequer começar, e o tempo livre só pode ser gasto com efemeridades, com tarefas domésticas, tiktok, pequenos passeios que não preenchem. Sei lá, eu não queria estar passeando nesse parque; queria estar escrevendo, lendo, pensando, fazendo música.
A gente não é tão livre quanto pensa. O seu tempo livre não é realmente seu. Você precisa descansar para voltar a produzir e, enquanto isso, precisa consumir para fazer a economia girar. No entanto, sinto que consegui fazer agora uma atividade que me faz muito sentido para mim: pensar sobre a condição humana e escrever este texto. Será mesmo que a vida presta?
O que estou lendo nestas férias?
O apocalipse dos trabalhadores (Valter Hugo Mãe)
A escrita desse livro é maravilhosa, embora o enredo seja bastante violento. Estou lendo para o clube do livro que tenho com as amigas do trabalho. Que engraçado: um livro sobre trabalho sendo lido NAS FÉRIAS para um clube do livro formado por pessoas do trabalho.
As pequenas virtudes (Natalia Ginzburg)
Um monte de texto tocante, com reflexões que mexeram muito comigo. Não imaginei que fosse isso que eu encontraria nesse livro. Não é à toa que Natalia Ginzburg é uma das inspirações maravilhosas de Elena Ferrante.
Enfim, eu gostaria muito de continuar escrevendo por aqui. Mas esse é mais um dos projetos que não consigo encaixar na minha vida quando não estou de férias.